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O Sacrossanto Partido, o Mito e o Cínico


Cornelius Van Til acusa a existência de pressupostos a sustentar toda a nossa visão de mundo. Não é possível determinar nenhuma modalidade de pensamento sem que carreguemos pressuposições. O racionalista, por exemplo, deve pressupor que a Razão é competente para produzir conhecimento verdadeiro, já que é incapaz de, pela Razão, comprová-la como potente para tal encargo. Herman Dooyeweerd, por sua vez, nomeia as bases primeiras do pensamento como motivos religiosos - a cultura, portanto, enraíza-se primordialmente em interesses existenciais de qualidade sumamente transcendental. Ninguém escapa disso. Do contrário, não há possibilidade do próprio conhecimento. A negação dessa realidade, o oferecimento de uma resposta filosófica fechada e reducionista para toda a generalidade das coisas, é o que se pode definir por "ideologia".

Quando entendo que há certezas apodíticas, que advém de fontes diferentes da própria Razão, podendo residir nos genes, no legado cultural, na experiência vivida e assimilada, perceba, nutro uma perspectiva aberta e não dogmática da realidade. Ideologia é o oposto disso, e a oposição é de tal maneira extremada que nela não consta nem o reconhecimento de seus limites pressuposicionais. O ideólogo acredita, seguindo no racionalismo, que toda a forma de conhecimento é obtida pelo exercício arbitrário da racionalidade. E, veja a inversão: na sua oposição às "suposições fideístas", às crenças inexplicáveis tomadas de base para que o mais se torne cognoscível, na sua repulsa pela consideração da imensa complexidade da existência, numa vil arrogância intelectual, o militante desliga todas as luzes da sala e deixa bruxuleando apenas a pequena chama da vela de seu ego. A explicação para todo o recinto, agora inacessível pelo dogmatismo, está no diminuto alcance da tímida luz que fora poupada e que se faz desproporcionalmente luminosa em seu contrate com as trevas espectrais derredores. Algum aspecto da totalidade é amputado de todo o resto e posto isolado, entronizado, como resumo para a universalidade, totem detentor do código para o entendimento dos segredos do cosmos. Aqui, na luta "antirreligiosa", a ideologia se faz a mais ferrenha e absolutista das religiões.

Não é necessário retroceder muito no passado para constatarmos o desenrolar inquisitorial da ideologia concretizada e oficializada na figura de um Estado, como o nazista ou o soviético, filhos do Século das Luzes, que levantou sombras perenes sobre o mundo. Casos extremados ainda presentes podem ser vislumbrados em vizinhos latino-americanos, e em nosso meio pelos coletivos militantes e suas ensandecidamente moralistas patrulhas politicamente corretas. Agora fica mais fácil de entender as razões da ideologia dada como política de Estado facilmente acarretar em desequilíbrios humanitários, políticos e econômicos - isso está na sua inerente natureza limitante. Ocorre que os próprios confins da ideologia excluem mecanismos de autoanálise capazes de reconhecê-los, antes favorecendo, no espírito de fanatismo sectário, a busca por bodes expiatórios, por inimigos capazes de absorver todas as culpas dos fracassos imanentes na mesma lógica ideológica. É da natureza das religiões, na medida em que se elenca uma divindade, a busca por uma anti-divindade, um oposto, um diabo.

Se o Sacrossanto Partido, enquanto detentor da gnosis capaz de levar o mundo para a condição de plenitude, posiciona-se como entidade celestial, imaculada, as falhas precisam necessariamente ser direcionadas para um anti-Partido, um antiprogresso, um grupo de "opositores golpistas", cuja "vilania" justifica a insistência nos defectivos termos ideológicos - na verdade, os faz messianicamente necessários, sendo eles as correntes que prendem os titãs nas profundezas do Submundo. Esse discurso de terror pode ser vislumbrado na história das ditaduras já aludidas, como os nazistas e seus holocaustos, e os soviéticos e seus expurgos.

Logo, a ideologia já não é mais vista pela maioria dos seus apoiadores como um sistema lógico, explicável e reconhecível em suas articulações, mas adentra nos domínios da magia e do mito. A persistência num sistema de crenças idólatras que constantemente tropeça ao longo da caminhada, demonstrando a inadmissível falibilidade, tende a produzir pouco mais do que fé, distanciando, empalidecendo e imaterializando cada vez mais os ideais motivadores. Sobram máximas repetidas religiosamente, como mantras, cujo significado não é mais importante, havendo algo como que um poder mágico na própria recitação do feitiço, do encantamento. E verdadeiramente nada mais precisa ser explicado: a ideologia está dada como algo absolutamente certo e as falhas estão todas fora dela, em inimigos imaginários, espantalhos. Psicose, esquizofrenia. Nesse ponto, há interesses sofísticos em descrever minuciosamente as supostas culpas e incongruências dos oponentes, mas perpetuar o desdém para com a justificação das próprias qualidades. Vive-se pela negação, faz-se aceitável pelo rebaixamento do resto todo. E o mundo, já desintegrado e dilacerado pela via pagã, perde sua beleza.

Sobra, no final, apenas o pressuposto, e nada mais: supostamente há um conhecimento sob o domínio do Partido e dos líderes que o encarnam, códigos inacessíveis para o povo comum, cabendo deposição de fé cega e obediência aos pais sacerdotais. O pressuposto é de que eles farão a coisa certa, mesmo que não se saiba como e nem que coisa é essa. Há interesse nas finalidades, mas não se observa as potências e qualidades das medianidades. Cria-se aqui uma lógica tecnicista, na qual o andamento da sociedade é de inteira responsabilidade da nomenclatura para tal “qualificada”, ungida. Diante da obtusa complexidade e do mar de paradoxos e inexplicabilidades de um sistema de pensamento político quimérico, como o Juche norte-coreano, evita-se o questionamento popular, pois o que não se entende minimamente não é passível de interrogações dentro de seus próprios termos, que não são identificáveis. Nesse caso, repito para ser conclusivo, entrega-se aos esfíngicos aristocratas esclarecidos o redentor papel de decifrar os enigmas e traduzi-los na prática.

Na verdade, isso é parte integrante e irredutível do marxismo por sua própria raiz iluminista: a Razão humana é potente o suficiente para, reconhecendo a inteireza da realidade, formular um sistema de pensamento cuja aplicação é capaz de erigir uma sociedade plena, e, nesse caso, aqueles dados por ignorantes e inaptos para concluir o mesmo que os esclarecidos, precisam ser domados pelo Estado por via de contrato – “para o seu próprio bem”. Isso está em Rousseau, está no Projeto Iluminista como um todo. É difícil medir os efeitos populares de um discurso que manipula os impulsos religiosos mais elementares, objetivando a perfectibilidade para a qual o reles mortal é incapaz de se encaminhar sem a mediação do Partido como ministro da ideologia, e atribui a totalidade da culpa pelo insucesso a um demonizado segmento da sociedade – a turba prontamente se mobilizará para extirpar do mundo dos vivos o seu suposto algoz. A existência, ao reduzir-se ao ídolo, tende a simplificar a complexidade dos problemas a uma equação asininamente limitada – basta mover ou remover alguns elementos, como num ritualismo animista, que magicamente os problemas são resolvidos, o fluxo da Força Vital é desobstruído e o Progresso é continuado.

Aos fieis adeptos do Estado dogmático, da ideolatria, que não têm discernimento da lógica daquilo que pregam, de sua razão, de sua coerência e aplicabilidade, de seu funcionamento e articulação como meio para o fim determinado, sobra tão somente o mito. Por mito, refiro-me ao tipo de explicação pré-filosófica e pré-científica que comumente se dá para algum fenômeno da existência, tratando-se, portanto, de uma resposta desconectada da realidade concreta que tenta significar, de uma visão perdida da esfera da avaliação racional, mais afeita às emoções, desejos e símbolos do indivíduo pensante do que à natureza própria do objeto investigado. O mito comumente é posto como sustentáculo da religião, visando legitimá-la de alguma forma, situando seu panteão e sua cosmogonia no mundo circundante e objetivo. A ideologia, ao ver invalidadas suas premissas medianas para o cumprimento das finalidades, além do mecanismo compensatório do bode expiatório, passa a fundar-se num verdadeiro arcabouço mitológico, forjando eventos deslocados do tempo e do espaço, no qual seu império surtira profundos efeitos socioeconômicos por via da correta e alquímica manipulação dos elementos ideológicos pelas semidivindades, que ocupam os pináculos do poder.

Elencar esses mitos, esses contos demovidos da realidade mensurável e testemunhável, não é tão difícil. Nos últimos dias temos sido cercados de vãs repetições, de mantras ideológicos que aludem a um suposto passado dourado do Partido e de seus líderes, anos jazidos nas areias do tempo, nos quais a sabedoria gnóstica levou nossa nação aos últimos patamares do prestígio mundial. É da ordem sofística a adulteração dos fatos para que a realidade se adeque aos seus interesses – exercício que resulta nas mais cínicas e maquiavélicas mentiras. Não entrarei nos concretos e esmiuçáveis fatos de ordem econômica e política mundial que favoreceram a economia brasileira da década passada, reduzindo os supostos méritos do Partido, pretendendo tão somente avaliar a própria mente daqueles que trabalham religiosamente na preservação do mito. Basta criticar o governo que as respostas, como que reações involuntárias de uma mente emocionalmente e existencialmente absorvida, são dadas no impulso: “E o milagre econômico? E as dezenas de milhões de pobres que saíram da miséria?” Não importa se tua crítica envolveu, por exemplo, a extremada corrupção, que lateja nas veias infectas do poder, você ouvirá “refutações” viscerais sobre a “redução da pobreza”, ou a ainda pior sustentação da corrupção oficial pela “corrupção dos outros” – como se ilegalidades fossem moralmente compensadas por resultados sociais, como se a venalidade de um pudesse ser extinguida pelo apontamento da pestilência do outro, numa monolítica moralidade infantil.

O que quero pontuar aqui, num primeiro momento, é a raridade de ouvirmos respostas satisfatórias para as nossas proposições. Em verdade, é a própria ausência de justificativas que leva à associação falaciosa com questões que não partilham da natureza daquilo que criticamos, como apelar para o “milagre econômico” diante de uma acusação de corrupção. E se apresentarmos a solidez das evidências de que a vigente e severa crise econômica brasileira, em dissonância da tendência internacional, resulta de más opções ideológicas do Partido, dificilmente receberemos como replicação algo além das máximas dogmáticas e míticas, não nos sendo oferecida uma resposta sistematizada e bem alicerçada que invalide nossas observações e seja capaz de provar com rigidez o contrário. O que nos é dado são pressupostos para além dos quais seus perpetradores são incapazes de ir.

Disso é que parece-lhes legítimo afirmar que a crise local advém de uma suposta crise internacional, para a qual não há nenhuma fundamentação averiguável na realidade concreta. Delírios! Delírios que chegam ao ponto de culpar até mesmo a mídia como responsável pela invenção de uma depressão que não existe, mesmo que incalculáveis empresas estejam fechando as portas, muitos milhares estejam perdendo os empregos e os preços se encontrem em contínuo aumento. Nesse situação, a demonstração dos fatos se mostra infrutífera: lidamos com fé, com religião, com mitologia, nosso interlocutor não está preocupado com o mundo sensível, não partimos das mesmas lógicas de raciocínio.

Para facilitar a comprovação disso que venho sugerindo, sugiro que o leitor, antes de apresentar evidências que comprovem a falência do raciocínio do fiel partidário, levante questionamentos. Se, por exemplo, o interlocutor alegar que “o governo resgatou 40 milhões da pobreza”, apenas teste-o para ver se ele entende algo sobre aquilo que ele mesmo está falando com tanta segurança, entregue-lhe o ônus da prova, faça com que ele tente explicar, dentro de parâmetros aceitáveis, como se deu esse processo messiânico, a concretização do Reino dos Céus, como o processo se associou à economia, às políticas públicas e aos demais fatores contextuais relevantes. Faça-o fugir do mantra, tire-o da zona do conforto dogmático, da inquestionabilidade. Se tiver sorte, ele reconhecerá que dissemina algo cuja dinâmica desconhece e não consegue conectar com a realidade factual, e se tiver mais sorte ainda, o levará a descobrir que, se milhões saíram da miséria, o mérito não deve ser dado inteiramente ao governo do ex-presidente. Isso também vale para as alegações sobre o “Milagre Econômico”, a fórmula de que privatizar equivale a tirar dinheiro do povo, a ilusão de que a intervenção do Estado sobre a economia é absolutamente necessária e benéfica, e, vale acrescentar, a historieta de que o processo político pelo qual a presidente tem passado não é impeachment, mas “golpe”. Nessa hora não te cabe mostrar que sabe refutar, mas cobrar o conhecimento daquele com quem se realiza o embate. Se não houver resposta suficientemente comprobatória, o mito em seu pleno funcionamento terá sido desnudado.

Infelizmente, contudo, a grande maioria, dadas as motivações religiosas, não se submeterá às conclusões da inquirição. A preservação das esperanças de redenção por mediação do Partido e da etérea Revolução, pelo seu enraizamento nas emoções e fundações identitárias elementares do indivíduo, está acima da concretude mais explícita que se possa ostentar. Como recurso último de integração de si por meio da escatologia, sempre sobrará a mais severa e despropositada distorção dos fatos, com recorrências à mídia como manipuladora de toda a realidade – evidentemente, as informações veiculadas pelos órgãos oficiais do Partido são perfeitamente críveis. De todo o modo, quando reconhecido o mito e a ilogicidade, a continuidade da defesa pautada nos mesmos mantras só pode ser descrita em termos de cinismo. A questão aqui é que não há mais a ignorância daquele que evitou pensar sobre a torpeza das próprias ideias, mas a maldade intencionada como meio para se alcançar a finalidade última.

O cínico pode ser dado como o ente que, mesmo tendo em vista a incongruência de um ideário, segue utilizando-o dissimuladamente para fins particulares. Nisso, ele é assemelhado ao sofista que, mesmo desprezado o valor real e próprio da Razão, a usa arbitrariamente para benefício de si. Evidentemente, nesse estágio, a própria moral está liquefeita, uma vez que parte constitutiva e sustentadora da moral é a consciência de finalidade, o vislumbre escatológico: age-se hoje para benefício do objeto ou do outro com relação à sua causa final, seu telos. Uma vez que a Nova Jerusalém está totalmente contida nos projetos de poder do Partido, que a finalidade de toda a existência está nos limites da ideologia e que todas as coisas devem convergir para o fim dogmático delimitado nos cânones da nomenclatura, sendo a Revolução um meio legítimo, a relação do sectário com as outras pessoas, as coisas e a cultura se situará dentro desses marcos. Passa-se, então, a ser moralmente legítimo recorrer às distorções de toda a espécie se o ato tiver como intento a preservação do líder, a proteção do Sacrossanto e a continuação da “Luta”. Para fazer justiça, acrescento aqui os cigalheiros que sustém a solidez da areia esperando imediatos favores de poder, status e cifrões.

Eis um claríssimo exemplo de cinismo que presenciei há poucos dias: no calor das investigações da Operação Lava Jato, com indicações de que se estava chegando ao Caso Celso Daniel, militantes começaram a investir desqualificação do caráter da pessoa do juiz Sério Moro, tentando, com isso, inabilitá-lo para as investigações por vias de um moralismo totalmente condicionado aos fins predeterminados. Isso, por si só, já é sintoma suficientemente alarmante, se não fosse o conteúdo da própria acusação contra Moro: ele supostamente não teria deixado que gravassem uma palestra sua, o que foi entendido como ato hipócrita, já que ele mandou grampear e divulgar as ligações telefônicas de um civil que está sendo investigado pela Justiça. Uma reação óbvia aos progressos da Lava Jato. Esse é o nível que se espera da mentalidade cínica: plenamente ciente da indefensabilidade falaciosa, apelativa e desonesta de seu ato, sabidamente motivado para o obscurecimento de um processo que se aproxima de constatações aterradoras, o ofídio lança a peçonha. Assim, em escárnio, articula-se e distorce-se a moralidade com intuitos profundamente imorais, num fingimento da mais pífia substância.

Caro leitor, essa reflexão é, para além da revelação daquilo que tenho percebido sobre a configuração mental e moral de uma porção daqueles que têm insistido na defesa do presente governo, um alerta para a repetição da história. A essência antropológica mais primária do marxismo o faz igualmente errante e repetível em toda a sociedade no qual ganha proeminência, por mais que arestas sejam aparadas, que o vermelho seja pintado de rosa, quer nos coletivos de militância, quer nos partidos políticos. Não há nenhuma base sólida para que a moral se sustente dentro dessa perspectiva materialista, que limita o mundo para ilimitar o homem e, assim, incorrer sempre na messianização do executor do poder como ente que, na ilimitude, atingiu patamar gnóstico mais elevado e, portanto, está apto e é necessário para a elevação e igualitarização dos demais. Não há nenhuma barreira intelectual que suprima a consumação apaixonada dos desejos mais ardentes e profundos do fiel. Não há barreira nenhuma para que, no estágio final de deterioração dessa religião política, dessa mitologização de tudo pela abstração e deslocamento da realidade concreta, o cinismo se torne a regra. Nesse dia, pela busca utópica do paraíso edênico perdido, teremos acendido as fornalhas do próprio Inferno.


Natanael Pedro Castoldi

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