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A Bíblia e o Cuidado dos Pobres

É interessante como comumente a Bíblia não marca presença em livros de história da economia, política, filosofia e psicologia, como sendo a representação das primeiras e algumas das mais sofisticadas ideias e práticas que o homem já deteve sobre essas áreas do conhecimento. A Torá é mais antiga que os grandes filósofos gregos, que geralmente são colocados no início das linhas do tempo das áreas anteriormente citadas, e, mesmo assim, consegue ser muito mais sóbria e sofisticada do que eles - considero injusto o evidente desprezo pelo livro que fez mais pela construção do Ocidente do que a filosofia grega. Se a minha última afirmação te soar estranha, procure ler os seguintes livros: Uma História Politicamente Incorreta da Bíblia, Robert J. Rutchinson, Agir, 2012, e O Livro que Fez o Seu Mundo, Vishal Mangalwadi, Vida, 2013.
Dentro da história da política, da economia, filosofia e psicologia, acho interessante comentar sobre a visão bíblica do ser humano e a forma como a Palavra estimulou o tratamento das pessoas menos privilegiadas. A mentalidade que será descrita na sequência é tremendamente avançada, superando de longe qualquer coisa que os povos contemporâneos às suas práticas iniciais entendiam e faziam - se hoje tudo o que for lido parecer normal, é porque a mentalidade judaico-cristã simplesmente construiu a nossa cultura nesse viés. Vejamos:

O diferencial fundamental do pensamento judaico e cristão sobre a ajuda aos pobres está na própria percepção sobre Deus. Diferentemente dos outros deuses da Antiguidade, o Deus do Antigo e do Novo Testamentos é um Deus entendido como a definição mais profunda de Amor e misericórdia, que fez pelo homem aquilo que ele não merecia, simplesmente porque o ama. Diante de tal atitude divina para com a humanidade, fica entendido para homem que este precisa ser amoroso e misericordioso com o seu próximo. Outro aspecto bastante reforçado na Bíblia é o período de escravidão e exploração que os hebreus passaram no Egito, como estrangeiros, uma experiência que sempre aponta para o bom tratamento daqueles que fossem estrangeiros, pobres e oprimidos em Israel. É fácil entender o otimismo judaico-cristão em ajudar os pobres quando vislumbramos o caráter triunfante, a percepção linear da História que culminará na glória de Deus, nutrida pelas Escrituras. A igualdade de todos perante Deus e a promessa de glória futura colocam os judeus e cristãos numa condição de maior dinamismo, cooperação e unidade, apontando para o desenvolvimento econômico, social e político das nações que ajudam a construir - esse tipo de cosmovisão foi o fator mais decisivo para o desenvolvimento integral do Ocidente cristão no último milênio, o que difere das implicações das visões de mundo dos politeísmo e animismos, que mergulham o povo no medo, no desconhecido, e tentam justificar castas e sistemas de vida invioláveis e indiscutíveis, num pessimismo altamente prejudicial.

No Antigo Testamento:
Qualquer leitor atento ficará surpreendido com o padrão de vida nas cidades israelitas, especialmente do período anterior ao da monarquia. Havia forte recomendação para a generosidade com os pobres (Dt 15:7-11; Sl 112:9) e, para garantir a sustentação de um sistema abrangente de bem-estar social, o Antigo Testamento estabeleceu várias instituições para atender os necessitados:

- Era estipulado pela Lei que as terras aráveis, as vinhas e os pomares deveriam ser deixados sem cultivo todo o sétimo ano "para os pobres" (Ex 23:10-11).
- Todo terceiro ano, um dízimo do produto da terra devia ser dado aos pobres (Dt 14).
- Os pobres tinham o direito de comer quanto quisessem, ao passar por uma vinha ou campo do vizinho (Dt 23:24-25).
- Na colheita, as respigas, as extremidades e os cantos dos campos deveriam ser deixados para os pobres (Lv 19:9-10).
Como Israel era uma sociedade agrícola, tais medidas eram muito eficazes para garantir a sobrevivência dos pobres e incapacitados.
Durante e depois da monarquia presenciamos um desdém profético para com a aquisição de riquezas, resultado da crescente aristocracia e de um severo aumento da pobreza, resultante das terríveis conquistas dos estrangeiros. Antecedendo em milhares de anos os mais conhecidos críticos da acumulação de riquezas e da opressão dos pobres, Amós e Isaías ridicularizam aqueles que esmagam os necessitados e desprezam a negação de justiça aos pobres, especialmente entre os grandes proprietários e juízes (Am 8:4-8; Is 5:8-10, 10:1-3, 58:1-14).

No Período Intertestamentário:
Nessa época, o judaísmo concentrou-se tanto na doação de esmolas e na caridade que tais atitudes tomaram ares de valor salvífico e expiatório. O ensino rabínico ressaltava três pontos: 1 - A doação generosa de esmolas era incumbência de todos, até mesmo dos pobres; 2 - Porém a generosidade deveria ter os seus limites, evitando produzir pobreza no doador. Era estipulada a doação de, no máximo, 20% da produção do indivíduo; 3 - Os atos de caridade deveriam proteger a honra dos beneficiados. Havia uma "câmara secreta" no Templo para que os pobres de "boas famílias" pudessem receber ajuda sem serem observados.

No Novo Testamento:
Nos dias de Jesus, havia um impressionante sistema de bem-estar social estabelecido em Israel: além daquilo que constava na legislação do Antigo Testamento, as sinagogas enchiam "cofres para os pobres" todos os sábados; uma "tigela para os pobres" circulava diariamente com alimentos; todas as semanas um "cesto para os pobres" levava alimentos e roupas aos necessitados. Jesus apoiou essas atividades (Mt 6:1-4; Jo 13:29) e recomendou a liberalidade na doação de esmolas (Mt 5:42; Lc 6:38). Observemos, ainda, as histórias de Zaqueu e do jovem rico (Lc 19:1-10; Mt 19:16-22). Devemos ressaltar, porém, que Jesus, em toda a sua sobriedade, alertou para a doação de esmolas que objetivassem ampliar a vaidade do doador - esmolas assim deveriam ser proibidas (Mt 6:2-3; 5:23-24; Lc 11:41).

Ecoando o sistema judaico e as palavras de Cristo, muitos cristãos da Igreja Primitiva vendiam suas posses e distribuíam os lucros (At 2:42-47; 4:32-33) - Ananias e Safira tentaram burlar essa convenção, enquanto procuravam status com uma falsa generosidade (At 5:1-5). At 6 descreve um ajuste administrativo da distribuição de ajuda. Tabita e Cornélio evidenciam que a caridade era uma marca registrada da retidão (At 9:36; 10:2). O próprio Apóstolo Paulo participou ativamente na doação de esmolas com sua ajuda a Jerusalém e com a coleta na sua Terceira Viagem Missionária (At 11).

Para Paulo, havia uma forte ligação teológica entre a misericórdia demonstrada por Deus e a misericórdia envolvida na doação de esmolas - era dever do crente refletir a misericórdia que recebeu do Criador através de atos de amor (Ef 2:4-9; Tt 3:5; Rm 12:1; 2 Co 4:1). Tiago também trabalha essa questão: Tg 2:13; 3:17.

Igreja Primitiva:
O Didaqué 1:6 observa: "Dá a todo o que te pede e não lhe exijas de volta; porque o Pai quer que se dê a todos das Sua próprias dádivas." Em 15:4, a doação de esmolas é equiparada com a oração como sendo uma responsabilidade cristã; 2 Clemente 16:4 afirma: "A doação de esmolas é coisa boa, assim como o é o arrependimento do pecado. O jejum é melhor que a oração, mas a doação de esmolas é melhor do que as duas... porque a doação de esmolas remove o fardo do pecado." Não podemos negar o debate teológico que tal vertente de pensamento proporcionou ao entrar em atrito com algumas afirmações de Paulo - Efésios 2:8-10 -, mas, ainda assim, passagens desse tipo apontam para o valor que a Igreja Primitiva dava à caridade. Com o tempo, conforme a Igreja penetrava nas correntes principais da sociedade e mais cristãos conheciam a riqueza, apesar do atrito causado, os cristãos primitivos começaram a aceitar a legitimidade da riqueza juntamente com a doação de esmolas.

Com tal mentalidade originaram-se os hospitais, os orfanatos, os ancionatos e diversos movimentos sociais que visaram o bem dos pobres e excluídos, tendo como representantes pessoas da estirpe de Francisco de Assis, que verdadeiramente revolucionou o mundo medieval.
Fonte: Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, Vida Nova, Walter A. Elwell, 2009, G. M. Burge, pgs 47-48, Volume 2; Didaqué, Vozes, 2012, pgs 18 e 37.

Natanael Pedro Castoldi

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